Da paz ao caos: Como viver (bem) em um terreno movediço?



O Santuário à Beira do Rio
Um domingo no Meinho do Mundo ( Líbano) : entre fogueiras, livros antigos e o silêncio dos bombardeios.
Ontem, fomos ao rio.
Não por turismo. Por necessidade.
Precisávamos respirar.
Levar amigos — um casal alemão que vive em um motor home , sonhando com liberdade rodoviária — para um lugar onde ainda há água, árvores, e memórias que não foram apagadas pela guerra.
Fomos com Azmi, meu marido, e Muehedine, seu primo — dois homens que cresceram em Beirute, antes de ela se tornar uma cidade que precisa explicar sua própria existência.
O rio é raro aqui. Quase sagrado.
Levamos salada, bebida, carvão. Eles trouxeram um peixe enorme — “digno de conversa de pescador”, disse Romi, a alemã que agora entende que, no Líbano, até os peixes têm história.
A fogueira esquentou mais que as pernas. Esquentou as memórias.
Muehedine falou de Imad — irmão mais velho de Azmi, piloto, morto em um acidente aéreo.
“Ele voava como se o céu fosse sua casa”, disse Azmi.
E então, Muehedine tirou da mochila um livro: Animal Farm, assinado pelos irmãos Kawas — – Olha, essa é a minha assinatura aqui! Exclamou Azmi, meu “Habibão” , todo emocionado.
Um objeto vivo. Uma prova de que, mesmo aqui, alguém leu, pensou, sonhou.
Que o pai deles — também piloto — incentivava os filhos a ler.
Que a cultura não morre só porque a bomba cai.
O Telefone Toca na Estrada de Volta
Na estrada de volta, Muehedine “matava” saudades.
Passava por ruas que frequentava na juventude. Contava histórias de cafés, de amores, de voos.
Até que o celular tocou.
Era o vizinho da loja:
“Houve um bombardeio. Cinco mortos. Vários feridos.”
O silêncio no carro foi tão denso que parecia material.
Romi, a alemã, perguntou em seus olhos, se poderiam antecipar o retorno.
O medo entrou sem pedir licença.
Ele não é novo. Mas sempre surpreende.
Porque ele vem depois da paz.
Depois das risadas.
Depois do peixe, do vinho, do livro, da fogueira.
Ele vem para lembrar: Beirute não é um lugar de fim de semana. É um lugar de resistência cotidiana.
Viver Apesar: A Única Revolução Possível
O que seria o oposto do ódio?
Paz?
Talvez.
Mas hoje, eu diria: o oposto do ódio é a capacidade de continuar vivendo, mesmo sabendo que o próximo passo pode ser sobre terra movediça.
Nós pintamos pássaros que voam sobre escombros.
Nós lemos livros em meio à guerra.
Nós fazemos churrasco quando o céu está limpo.
Porque viver bem, aqui, não é viver sem medo.
É viver apesar dele.
E talvez, nesse gesto simples — de levar amigos a um rio, de compartilhar um peixe, de folhear um livro antigo — esteja a verdadeira revolução:
Não esperar que o mundo mude. Mudar o mundo dentro de si, enquanto ele se desfaz ao redor.

Este texto foi um respiro, um registro de um dia que precisava ser contado. Se ele falou com você, compartilhe ou deixe um comentário contando o que é ‘viver bem no seu terreno movediço’. Sua história me interessa.
(Jeane Satie – Artista visual nipo-brasileira em Beirute, criadora da Embaixada das Pontes e da série Pássaros de Beirute)

