Na Fronteira da Chuva: Quando a Vida é Apenas uma Questão de Dois Passos
Adma, Líbano – Onde o céu desenha fronteiras invisíveis

Hoje, em Adma, uma cidade ao norte do Meinho do Mundo, o universo me deu uma aula de geografia humana. Diante de mim, uma linha invisível separava a chuva do sol. De um lado, a água que dá vida. Do outro, a luz que aquece. E eu, no meio, com meus Pássaros de Beirute na mente, entendendo finalmente o que é nascer do “lado errado” da fronteira.
Os Pássaros de Beirute que pinto não são apenas arte — são testemunhas. Testemunhas de que alguns nascem sob bombardeios enquanto outros nascem sob aplausos. De que alguns herdam escombros, outros herdam impérios. E tudo isso — tudo — determinado por meros quilômetros de latitude e longitude.
Dois Passos
Na minha frente, a chuva caía pesada num lado da rua. Do outro, o sol brilhava implacável. Dois passos. Apenas dois passos separavam o ensopado do seco, o que molha do que aquece, o que nutre do que apenas ilumina.
E eu pensei: quantas vidas são definidas por esses “dois passos”? Quantos destinos traçados não por merecimento, mas por acidente geográfico? Quantos Pássaros de Beirute nunca conseguirão voar porque nasceram em gaiolas invisíveis?
As Fronteiras que Existem Apenas para Um Lado
Aprendi, olhando para o céu de Beirute, que as fronteiras só existem para um lado. Enquanto nossos sonhos precisam de vistos, seus drones atravessam impunes. Enquanto nossos passaportes são questionados, suas armas não conhecem barreiras. As fronteiras, afinal, não são linhas no mapa — são hierarquias de poder disfarçadas de geografia.
Minha arte sempre falou de fronteiras — entre países, entre culturas, entre a dor e a beleza. Mas hoje compreendi: a fronteira mais cruel é aquela que não vemos, mas que carregamos na pele, no sotaque, no passaporte, nas oportunidades.
O Voo dos Pássaros
Os Pássaros de Beirute voam não porque são mais fortes ou mais fracos — voam porque aprenderam que o céu é o mesmo para todos, mesmo quando o chão não é. Voam porque sabem que, em algum lugar, existem pessoas como eu e você, tentando entender esses dois passos que separam a sorte do azar.
Sempre acreditei que fronteiras fossem apenas linhas imaginárias… Até entender que algumas linhas decidem quem come e quem passa fome, quem vive e quem morre. Lembrei de Arnaldo Antunes na voz de Marisa Monte:
“…Esse mundo não é meu, esse mundo não é seu… Estou aqui de passagem”
Beirute, a Cidade-Alma
Enquanto seleciono as músicas para esta reflexão, não posso deixar de incluir “Le Beirut” — seja na versão que homenageia a cidade, seja na voz inigualável de Fairouz. Porque Beirute não é apenas um lugar — é um estado de alma. É a cidade que ensina que a beleza pode florescer mesmo entre as ruínas, que a vida persiste mesmo quando tudo parece perdido.
O Privilégio de Cruzar
Enquanto eu fechava minha câmera, a chuva parou. O sol chegou até onde eu estava. E pela primeira vez, entendi meu privilégio: eu posso cruzar essas fronteiras.
Minha pergunta é: o que faremos com esse privilégio?

Sobre os Pássaros de Beirute: Esta série artística explora as fronteiras invisíveis que definem nossas vidas, usando a metáfora de pássaros que voam sobre uma cidade que nunca para de renascer.

